Entrevista para o Número 1, com Glenda Mezarobba

Entrevista, Glenda Mezarobba, 12 de março de 2021

Cientista política, pesquisadora independente, editora de humanidades da Revista Pesquisa Fapesp. Autora de Um Acerto de Contas com o Futuro: a Anistia e suas Consequências – um Estudo do Caso Brasileiro, lançado em 2006 pela Humanitas/Fapesp e de 15 capítulos de livros.

 Na condição de especialista em Justiça de Transição, ou seja, em como os Estados lidam com legados de violações em massa de direitos humanos, escreveu os quatro verbetes referentes ao  Brasil  para  a primeira enciclopédia sobre o tema, publicada pela Cambridge University Press, em 2012. 

Depois de assessorar o representante da sociedade civil na elaboração do anteprojeto de lei que deu origem à Comissão Nacional da Verdade, atuou como consultora sênior para a mesma CNV.

Formada em Jornalismo (UFPr), com mestrado e doutorado em Ciência Política (USP) e pós-doutorado (Unicamp).

 

 

Entrevista, Glenda Mezarobba, 12 de março de 2021

Cientista política, pesquisadora independente, editora de humanidades da Revista Pesquisa Fapesp. Autora de Um Acerto de Contas com o Futuro: a Anistia e suas Consequências – um Estudo do Caso Brasileiro, lançado em 2006 pela Humanitas/Fapesp e de 15 capítulos de livros. Na condição de especialista em Justiça de Transição, ou seja, em como os Estados lidam com legados de violações em massa de direitos humanos, escreveu os quatro verbetes referentes ao  

Brasil  para  a primeira enciclopédia sobre o tema, publicada pela Cambridge University Press, em 2012. Depois de assessorar o representante da sociedade civil na elaboração do anteprojeto de lei que deu origem à Comissão Nacional da Verdade, atuou como consultora sênior para a mesma CNV.

Formada em Jornalismo (UFPr), com mestrado e doutorado em Ciência Política (USP) e pós-doutorado (Unicamp).

 

Qual o traço mais importante da sua trajetória?

Não sei dizer se seria o mais importante, mas minha trajetória profissional tem a marca da curiosidade. Curiosidade é algo que informa tanto o jornalismo quanto a ciência, as duas carreiras são movidas pelo desejo de descobrir e conhecer. Minha incursão no jornalismo, com ênfase na cobertura política e depois cultural, ocorreu em uma época singular, de redemocratização do país.  Ingressei no mercado de trabalho durante a Assembleia Constituinte, portanto um pouco antes da aprovação da Constituição de 1988.  Assim, ao iniciar a cobertura política, em Curitiba, tive a oportunidade de acompanhar a elaboração de leis nas arenas estadual e municipal, o debate em torno de sua aprovação e, depois, o desafio de implementá-las. Aprendi muito não apenas sobre o fazer legislativo, mas também sobre o funcionamento do Legislativo, o que foi constituindo uma certa maneira de enxergar o campo da política, de dentro para fora. É interessante, porque quando ingressei no mestrado, em 2001, trouxe uma questão formulada em termos muito jornalísticos.  Dois anos antes, em 1999, eu havia passado uma temporada em Berlim, como bolsista do Internationale Journalisten-Programme (IJP) e lá tive a oportunidade de explorar temas que, mais tarde eu iria descobrir, constituíam o cerne do que se convencionou chamar de justiça de transição. Naquela época, ainda era uma formulação muito nova, dentro de perspectiva mais ampla, dos direitos humanos.

Este comprometimento com a agenda de direitos humanos e justiça de transição depois levou você ainda mais para perto para a formulação de políticas públicas, com o seu trabalho como consultora do PNUD na Comissão Nacional da Verdade. Como foi esse aterrissar no “fazer política,” no sentido de moldar instituições, de ajudar estas instituições a operarem, não é, porque você participou ativamente dos diálogos, da relatoria. Como os vários papeis da Glenda ate então, o comprometimento com a agenda de direitos humanos, a experiência histórica, a passagem pelo jornalismo, a própria formação – a coisa que parte da curiosidade – que tenta esgotar as respostas a estas perguntas mais amplas, como isto se desdobra no trabalho na Comissão Nacional da Verdade?

 Olhando retrospectivamente, na academia tive a oportunidade de avançar no aprendizado proporcionado pelo jornalismo.  Da amplitude, fui para a profundidade, ao tentar entender a relação das vítimas da ditadura com a legislação desenvolvida para lidar com as graves violações de direitos humanos ocorridas naquele período. No momento seguinte, com o conhecimento propiciado pela pós-graduação, tive a possibilidade, em uma feliz coincidência histórica, de assessorar Paulo Sérgio Pinheiro, representante da sociedade civil no grupo de trabalho que elaborou o anteprojeto de lei que criou a CNV e de atuar na própria comissão. Não é sempre que o saber científico, sobretudo na área de Humanidades, e especialmente nessa “minha” temática, se encontra com a realidade, em um intervalo tão curto de tempo. Na CNV, trabalhei com Pinheiro e José Carlos Dias, fui responsável pela pesquisa envolvendo a violência sexual e de gênero, por parte do diálogo com as Forças Armadas e por algumas pesquisas em arquivos estrangeiros, como o da Organização das Nações Unidas.  O trabalho na Comissão Nacional da Verdade foi uma experiência muito impactante e, de alguma maneira, amarra todas as vivências profissionais anteriores.

Qual o papel da ciência, do conhecimento acumulado ao longo desta migração não trivial do jornalismo para a ciência politica, para a construção do seu olhar sobre o fazer politica científica?

Em 2010, na época do pós-doutorado, desenvolvido na Unicamp e no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos, surgiu a oportunidade de atuar com fomento à pesquisa na Fapesp. Nunca havia me ocorrido trabalhar com o apoio à pesquisa científica, mas naturalmente essa é uma possibilidade para quem tem formação em ciência política ou em relações internacionais. Iniciei ali, então, um terceiro desdobramento da minha trajetória profissional. Depois do jornalismo e da ciência política voltada para a temática dos direitos humanos, veio essa terceira vertente, ligada ao suporte à pesquisa científica. Ao ingressar na fundação, fiquei responsável pela área de ciências humanas e sociais, apoiando o diretor científico no desenvolvimento das atividades dessa gerência. Também tive a oportunidade de atuar no processo de internacionalização das parcerias científicas, algo que o professor Carlos Henrique de Brito Cruz estava impulsionando naquele momento. Fui ingressando nesse universo, que é um outro aspecto das relações internacionais, constituído por intermédio da ciência e indissociável do fazer democrático. Por pressupor o diálogo, não dá para pensar em parceria científica fora da lógica da democracia. E aí foi ficando mais claro, para mim, que o conhecimento científico não existe se não for comunicado. Primeiro você comunica os resultados de uma pesquisa para os seus pares na academia. Começa, portanto, comunicando para um círculo mais restrito de interlocutores e faz isso porque é desejável que o conhecimento produzido seja não apenas comunicado cientificamente, mas também avaliado. Depois vem o outro aspecto, da divulgação científica. Diferentemente da comunicação científica, feita em publicações especializadas, em processos que envolvem peer review, e muitas vezes com um enfoque mais “técnico,” a divulgação científica destina-se ao grande público. Aqui, o desafio é maior, porque você precisa transformar aquele conhecimento, que em algumas áreas pode ser muito hermético, em algo palatável, de fácil compreensão para um público amplo, de distintos graus de instrução e formação. Em 2015, quando assumi a Diretoria de Cooperação Institucional do CNPq, a convite do professor Hernan Chaimovich, adquiri outra dimensão do fazer científico, sobretudo do fomento à pesquisa científica. Porque são camadas. O fazer científico é uma camada e o fomento a esse fazer científico é uma outra camada. Nessa diretoria, respondia também pela cooperação internacional. E ali ficou muito claro o protagonismo que a ciência brasileira pode exercer em termos de soft power. Inclusive como a cooperação que se desenvolve entre países, pela via científica, em todas as áreas do conhecimento, pode contribuir para a promoção da democracia e para a promoção e respeito aos direitos humanos.

Este é outro desdobramento da sua trajetória acadêmica para a arena de políticas públicas.

Sem o apoio do Estado, é impossível avançar na produção de conhecimento científico. Parcerias privadas são muito importantes, mas o Estado é imprescindível nesse processo. Na minha temporada em Brasília, entrei em contato com programas de cooperação para a formação, em instituições brasileiras de ensino superior, de quadros de outros países. No próprio CNPq, começamos a desenvolver um trabalho de acompanhamento da trajetória desses estudantes. Rapidamente evidenciou-se o impacto da experiência acadêmica vivida no Brasil na trajetória profissional desses indivíduos. Alguns desses estudantes tornaram-se ministros de Estado, em seus países de origem. Difícil imaginar possibilidade mais concreta do exercício de soft power.

Eu gostaria de resgatar uma parte da sua fala, no relato da sua experiência de 18 meses como diretora de cooperação institucional no CNPq. Trata-se do elemento de surpresa com relação à qualidade da ciência que estava sendo produzida no Brasil, por parte de pesquisadores estrangeiros. Me parece que este mesmo descompasso na percepção da qualidade da ciência produzida no país vis-à-vis o olhar internacional, ele existe também no que diz respeito ao olhar da sociedade brasileira. Muitas vezes o indivíduo que não integra a comunidade acadêmica desconhece o papel do Brasil como produtor de ciência, protagonista na acumulação do conhecimento existente sobre os mais vários temas. Neste caso, a divulgação científica assume este outro papel, não apenas de compartilhar o conhecimento em si, mas também a qualidade deste produto; o papel de destacar para a sociedade o retorno do investimento que a sociedade fez na produção do conhecimento, através dos seus impostos. Gostaria que você elaborasse sobre isso: como a divulgação cientifica – canais de divulgação cientifica, a exemplo deste projeto em particular, contribuem para esta tarefa de prestar contas.

Não posso dizer que em algum momento da minha trajetória duvidei da qualidade da produção científica nacional. Pelo contrário. Desde o ingresso na Fapesp, a excelência da produção foi progressivamente sendo evidenciada para mim. O que em certa medida surpreendeu – e surpreende – é o espanto que muitas vezes cientistas estrangeiros manifestam com a qualidade do que aqui se produz. Em julgamentos internacionais de propostas, em mais de uma ocasião tive a oportunidade de presenciar isso. Além de emocionantes, momentos como esse confirmam a importância da comunicação e da divulgação científicas. Em relação à produção nacional, é preciso considerar a primeira barreira, que é a língua portuguesa. Em algumas áreas do conhecimento, como as Humanidades, muitas vezes ela surge como intransponível para quem não domina a língua franca da ciência, o inglês. Há também a questão do tempo e a imensidade da informação produzida. É praticamente impossível, no século XXI, se apropriar, em “tempo real” de todo o conhecimento produzido, mesmo que em uma área bem delimitada da ciência. Tem-se claro, portanto, que há muito espaço para se aprimorar a comunicação e a divulgação cientificas. Nesse aspecto, me parece que o boletim Acauã pode desempenhar um papel relevante na área de relações internacionais. Porque se trata exatamente disso: do fazer-se conhecer, do saber que existe, de que alguém, próximo ou distante, pode estar pesquisando algo parecido com o que estou pesquisando e que, juntos, compartilhando o  conhecimento, podemos chegar a um resultado mais interessante – ou pelo menos avançar na construção do conhecimento. Há um universo, envolvendo a divulgação científica, a ser pensado e ser preenchido.  A pandemia, em alguma medida, explicitou possibilidades.  Ao proporcionar espaço para cientistas comunicadores, a Covid-19 revelou cientistas com capacidade de destrinchar questões complexas como as que envolvem a doença propriamente dita, mas também a crise sanitária,  a crise econômica e a crise social.  Desde a eclosão dos primeiros casos, o desafio apresentado pela pandemia tem revelado pesquisadores em diferentes níveis de formação, com capacidade de comunicar o papel da ciência e a importância da ciência. O que nos faz lembrar que a ciência, por si só, não tem muita razão de ser, não é? Ninguém faz uma pesquisa para reter suas descobertas, para não compartilhar o conhecimento adquirido. A ciência só existe quando é compartilhada, testada, desafiada. E pensar o boletim, esse projeto de vocês, me parece isso: constituir uma possibilidade de troca, em uma área específica do conhecimento. Um dos desafios, e a pandemia deixou isso evidente, do fazer ciência hoje, é como comunicar o conhecimento. E também como devolver o investimento feito pela sociedade. Não dá para pensar o fazer científico sem a preocupação com a qualidade do conhecimento e com a capacidade de comunicar esse conhecimento de forma verdadeira – e precisa.

Glenda, muito obrigada por esta reflexão tão rica sobre ciência, direitos humanos, democracia; sobre o papel da comunicação e da divulgação científicas, e sobre as múltiplas perspectivas do fazer científico – partindo da curiosidade!

 

A entrevista foi conduzida por Cristiane Lucena.