Entrevista para o Número 2, com Carlos Milani

Carlos R. S. Milani é Professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP). Fundador e coordenador do Observatório Interdisciplinar de Mudanças Climáticas (OIMC) (http://obsinterclima.eco.br/), Carlos Milani é Pesquisador CNPQ/1-B e já contribuiu para o desenvolvimento das seguintes áreas de pesquisa em Relações Internacionais:

atores e agendas da política externa brasileira, política externa comparada (México, Turquia, África do Sul e China), cooperação internacional para o desenvolvimento, direitos humanos e mudanças climáticas.

Professor Carlos Milani, como surgiu e quais os principais objetivos do OIMC?

No ano passado, em 2020, a partir de uma série de conversas com colegas da faculdade de Oceanografia, de educação, no âmbito do próprio IESP, do departamento de relações internacionais da UERJ, propus a criação de um Observatório Interdisciplinar de Mudanças Climáticas (OIMC). Partimos da constatação de que era chegado o momento de ter um olhar complexo, multidimensional e interdisciplinar sobre o tema das mudanças climáticas. Alguns autores designam o tema como um hiperobjeto, como lembraria Timothy Morton ou Déborah Danowsky, no sentido de que é muito complexo, diz respeito a muitos setores de políticas públicas, podendo gerar paralisia e inação de indivíduos e instituições, sem saber necessariamente como tratar do tema.

Partindo da constatação da importância das Universidades – e da UERJ em particular – e ter programas de pesquisa, de formação, disciplinas, e capacidade de incidência na comunidade, fora da universidade, torna-se importante termos uma plataforma de diálogo, cooperação e ação coletiva em torno das mudanças climáticas. Assim, podemos incluir o papel tríplice da Universidade: o papel da pesquisa, formação e extensão no foco do tema das mudanças climáticas.

Nesse contexto, o OIMC tem contado com o apoio certeiro e importante financiamento do Instituto Clima e Sociedade, o que nos permitiu investir em material bibliográfico, capacitar estudantes, fornecer bolsas de estudo, financiar algumas pesquisas e atividades, além de criar o website que descreve e divulga os objetivos do Observatório (http://obsinterclima.eco.br/). O OIMC é uma iniciativa recente, mas cheia de ambições para o futuro.

Como é a relação da sua trajetória acadêmica com a temática das mudanças climáticas? Foi um tema recorrente em sua trajetória ou trata-se de uma temática de pesquisa recente para você?

Bom, eu tenho 53 anos, fiz a minha pesquisa de doutorado há mais de 20 anos na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris – França. Defendi minha tese em 1997 sobre o meio ambiente como uma problemática das relações internacionais. Naquela época, foi a primeira tese sobre os fenômenos ambientas nas relações internacionais na França, e curiosamente uma tese feita por um estrangeiro. Depois disso eu pesquisei ainda mais uns anos sobre a temática ambiental, mas eu fui trabalhar como um funcionário internacional da UNESCO na sede de Paris, dei aula em Sciences Po, também em Paris, durante 5 anos, e retornei ao Brasil somente em 2002. Naquela ocasião fui para Salvador, ser professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde eu comecei a trabalhar com a temática da cooperação internacional para o desenvolvimento, e não mais com a temática ambiental. Deixei por um tempo o tema e agora, mais recentemente, resolvi retomá-lo como o centro das minhas atenções de pesquisa, de formação, de ensino, orientação de dissertações de mestrado, de TCCs, e também de teses de doutorado. Assim, posso dizer que nos meus próximos anos a minha meta é dedicar os meus próximos anos de vida acadêmica à temática das mudanças climáticas, retornando a uma agenda original de trabalhos e pesquisas lá nos anos 90 sobre ecopolítica internacional.

Uma das principais propostas do Observatório é a interdisciplinaridade. De que forma você acha que esse conceito (e prática) contribui para o estudo das Mudanças Climáticas?

Eu sou da área de Relações Internacionais, não pretendo entrar no debate (sem fim) se Relações Internacionais seria uma disciplina ou um campo interdisciplinar. A minha abordagem, do ponto de vista teórico e empírico, dos temas que eu pesquiso em relações internacionais, é sempre uma abordagem que busca suas fontes na sociologia política, na ciência política, na economia política, na história, etc. Eu acredito que seja absolutamente fundamental nós termos uma abordagem que coloque diferentes disciplinas e campos de conhecimento em diálogo, para entender as Relações Internacionais como um todo e as mudanças climáticas como um fenômeno fundamental das relações internacionais.

A interdisciplinaridade no campo de pesquisa e de ação em matéria de clima se impõe, porque o tema foi construído ao longo dos últimos 150 anos, aproximadamente, nas ciências do clima, na meteorologia, e na climatologia, mais recentemente. É muito importante que as ciências sociais e as humanidades se apropriem do tema e invistam com pesquisa, com conhecimento, com geração de conceitos e de problematizações para pensar de modo interdisciplinar as suas causas, os seus efeitos, os processos de construção da vulnerabilidade enquanto suscetibilidade, sensibilidade e resiliência. Não há como entender a vulnerabilidade nesse tripé (suscetibilidade, sensibilidade e resiliência) sem associar a vulnerabilidade dos ecossistemas aos processos humanos, processos sociais, econômicos, ao desenvolvimento do capitalismo e à evolução da política internacional.

Não por acaso, quando surge o debate sobre o antropoceno – a partir da publicação de um artigo curto, de uma página, elaborado por Crutzen e Stoermer em 2000 (The “Anthropocene.” Global Change Newsletter 41: 17–18), o termo surge das ciências exatas e da natureza. A partir do momento que as ciências sociais e humanas entram no debate, a problematização sobre o antropoceno se complexifica, e hoje temos uma série de conceitos correlatos que tendem a provocar tensões no debate sobre antropoceno, capitaloceno, plantationceno, etc. O antropoceno seria uma nova era geológica – segundo cientistas do clima – na qual nós humanos teríamos adquirido uma agência geológica e estrutural de incidência sobre os mecanismos de funcionamento do Sistema Terra, o chamado Earth System. O que seria trazido das ciências sociais e humanas é justamente a noção de diferença e desigualdade. A humanidade enquanto tal é uma abstração, pois existem muitas humanidades distintas. Alguns humanos incidem mais negativamente e são maiores emissores de gases de efeito estufa do que muitos outros. Assim como existem humanos que sofrem os efeitos nefastos das mudanças climáticas de modo muito mais premente no curto prazo e mais intenso do que outros. Nesse contexto, como entender vulnerabilidade e antropoceno sem levar em consideração os processos sociais, políticos e econômicos que estão por detrás do modo como se chega a esses conceitos de vulneralibidade e antropoceno?

Neste contexto, se tem falado muito sobre capitaloceno, plantationceno, chcutuloceno, nas abordagens de Donna Haraway e de Anna Tsing. Além do plantatioceno, dentre outras terminologias, muitas têm surgido para debater aspectos do antropoceno e sobre qual humanidade seria essa, que impacta no sistema Terra. Existem alguns humanos que impactam mais do que outros, e existiriam alguns humanos que sofrem muito mais intensamente do que outros; então digamos que essa abordagem interdisciplinar das mudanças climáticas é absolutamente fundamental para entendermos como os processos sistêmicos complexos e multidimensionais como as mudanças climáticas apresentam causas e efeitos desiguais e diferentes em função da própria evolução do sistema econômico capitalista. Há uma complexidade de aspectos a serem identificados, ao se tratar de mudanças climáticas, em função das distribuições desiguais e diferenciadas de recursos de adaptação entre o Norte e o Sul do sistema internacional, entre países centrais e periféricos, entre classes sociais mais ricas e mais pobres que podem existir nos países em desenvolvimento e dentro de países desenvolvidos

Sabemos que o Observatório possui parcerias com grupos como o ACA Brasil e universidades de fora do estado do Rio de Janeiro e do país, como a Universidade de Brown, através do grupo Climate Social Network. Quais são as parcerias do OIMC e qual a importância dessa network para o Observatório?

O OIMC nasce como um observatório da UERJ, e isso tem sido debatido entre os principais pesquisadores do observatório e a decisão, pelo menos até agora, foi a de que se trata de um observatório da UERJ. Evidentemente, o OIMC encontra-se aberto para parcerias com outras universidades do Rio de Janeiro, do Brasil e de fora do país, e a organizações da sociedade civil que não sejam Universidades, ONGs, fundações etc. Estamos construindo parcerias importantes com um amplo leque de atores acadêmicos, da sociedade civil e também de entidades subnacionais, como no caso do Fórum Municipal das Mudanças Climáticas de Niterói.

O nosso tripé de ação – que é pesquisa, formação e incidência social e política – nos leva evidentemente a desenvolver parcerias com grupos de pesquisa e Universidades, como é o caso da Universidade de Brown nos Estados Unidos, em Providence, por meio do Climate Social Science Network, onde eu a professora britânica Ruth McKie coordenamos o grupo de trabalho sobre o Sul Global e vários outros temas de pesquisa instigantes dentro desse programa. Nós somos signatários membros da ACA Brasil (Ação Climática no Capítulo Brasil), temos uma parceria que está sendo construída com o Observatório do Clima, que tem uma larga trajetória, além de outras Universidades e pesquisadores de outras universidades que fazem parte do OIMC da UERJ, como é o caso da pesquisadora Daniele Costa da Silva (UFRJ-IRID), do professor Rubens Duarte (ECEME), assim como o professor Ismael Silveira (UFBA), dentre outros. Enfim, no site vocês podem ver a lista mais completa dos membros do OIMC e das parcerias.

A parceria mais importante que o Observatório tem no momento é a parceria com o Instituto Clima e Sociedade.  Essa é a parceria que está na origem do OIMC, o ICS é nosso principal financiador e até o final de 2022 nós temos um projeto em execução que garante o desenvolvimento das atividades do Observatório.

Existem pretensões de produções conjuntas, qual é a agenda do OIMC para os próximos anos?

Nossas atividades estão planejadas até o final de 2022 e elas estão distribuídas nesses 3 eixos (pesquisa, incidência e formação), como já dito anteriormente. Quanto à pesquisa, nós temos as pesquisas individuais dos pesquisadores associados ao OIMC, em que cada um poderia explicar melhor sobre suas pesquisas; eu coordeno um projeto, que é meu projeto de bolsa de produtividade do CNPQ e também junto a FAPERJ, que diz respeito à fundação e desenvolvimento dos negacionismos climáticos no Brasil. A perspectiva de minha pesquisa é a do aprofundamento qualitativo sobre as relações entre negacionismo climático como campo político e a emergência de lideranças autoritárias no Brasil. O objetivo seria, após de concluído o estudo de caso sobre o Brasil, fazer pesquisas comparativas sobre como outras lideranças autoritárias mundo afora que integram o negacionismo climático nas suas agendas de política externa e nos seus perfis de comportamento internacional em matéria de negociação climática multilateral.

Existem pesquisas coletivas no Observatório sobre vulnerabilidades, junto com cientistas sociais e pesquisadores da área de Oceanografia e da Educação; pesquisas voltadas para a construção de imagens, mapas, gráficos, matrizes, na produção da mapoteca do OIMC. Já há uma mapoteca e uma série de imagens disponíveis em diferentes idiomas no site do Observatório. Assim, o objetivo em termos de pesquisa e agenda do OIMC é desenvolver atividades que sejam ao mesmo tempo individuais, em alguns casos envolvendo pesquisadores de uma mesma área, e também pesquisas coletivas que envolvam pesquisadores de diferentes campos do conhecimento. Essa agenda se desdobra em termos de pesquisa e formação. Um exemplo para citar é uma disciplina que ministrei em 2020 junto com o professor José Maurício Domingues da área de Sociologia do IESP/UERJ sobre mudanças climáticas. Nesse semestre de 2021 estou ministrando uma disciplina sobre negacionismos climáticos, e no próximo semestre oferecerei na pós-graduação uma disciplina com o professor da Universidade Nacional de San Martin, de Buenos Aires, sobre política, meio ambiente e mudanças climáticas na América Latina. Eu penso que na formação ainda temos o desafio de construir – e é o que está sendo planejando agora – cursos de extensão e cursos de treinamento para lideranças de movimentos sociais não ambientais e não climáticos. A ideia é levar ao movimento negro, ao movimento das mulheres, aos movimentos indígenas, aos movimentos urbanos etc., a agenda do clima de um modo acessível e compreensível, construindo pontes entre o clima e outras agendas por direitos e por novos modelos de desenvolvimentos no Brasil.

Na sua visão, quais são os maiores desafios de se produzir conhecimento sobre mudanças climáticas atualmente, tanto no âmbito da academia quanto da comunidade não acadêmica?

Em primeiro lugar, o desafio é o da compreensão do tema. Em função da complexidade do tema, o primeiro desafio é definitivamente o de apresentar um recorte para a dimensão do estudo sobre as mudanças climáticas. Penso que esse é o primeiro grande desafio na produção de conhecimento, para não se perder o tema no oceano das complexidades, das multidimensionalidades, etc. Com essa meta muito clara em mente, eu decidi focar fundamentalmente em três agendas de pesquisa que eu pretendo estar desenvolvendo nos próximos meses e anos: a agenda sobre a relação entre nagacionismo climático e outras formas de negacionismo e a emergência de governos autoritários mundo afora. Ou seja, de que modo a erosão da democracia é afetada também pelas expressões históricas e empíricas de negacionismo climático. Uma segunda agenda é a da segurança coletiva e segurança planetária. Pretendo trabalhar como conceitualmente as ameaças que as mudanças climáticas representam incidem sobre a agenda de segurança e de defesa dos Estados, sobretudo os Estados com os quais eu tenho trabalhado mais detalhadamente que são meus 6 países de predileção: Brasil, México, África do Sul, Turquia, Índia e China. Um terceiro canteiro de pesquisa que vai ser o de dar continuidade à agenda que eu já tinha anteriormente, de política externa comparada com o foco em mudanças climáticas em torno desses 6 países. Acho que fundamentalmente são esses os temas que pretendo desenvolver nos próximos anos, durante essa última fase de minha carreira acadêmica.

Sabemos que o tema do negacionismo tem sido foco de suas reflexões e agenda de pesquisa e ensino. Poderia nos falar mais especificamente, como você interpreta o crescente negacionismo no Brasil e no mundo?

Em primeiro lugar, nos Estados Unidos o negacionismo surge fundamentalmente junto com a agenda climática. Ou seja, quando surgem os primeiros consensos em torno da necessidade de criação de um Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, estabelecido em 1988, já havia sementes importantes do negacionismo. O negacionismo surge junto com a própria agenda, em função do perigo que um consenso em torno das mudanças climáticas poderia gerar para o modelo capitalista neoliberal de desenvolvimento – modelo assentado e ancorado na combustão fóssil. Como pensar a redução ou mitigação das emissões de gases de efeito estufa sem levar em consideração o problema que as energias fósseis, petróleo, gás, carvão, etc.  representam para a manutenção de um clima estável como um bem público global?

Isso é o primeiro elemento. Os negacionismos climáticos surgem no centro do capitalismo, sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido e vão se difundindo em direção ao Canadá, Austrália, alguns países europeus ocidentais, onde a agenda de pesquisa sobre o negacionismo climático se encontra mais desenvolvida, com a construção de conceitos e tipologias, com conhecimentos empíricos sobre atores, agendas, dinâmicas políticas que explicam o funcionamento dessas redes de negacionistas transnacionais. Os think tanks mais conservadores exercem também um papel importante nesse processo de difusão.

No caso brasileiro, a partir do momento em que existe o anúncio da descoberta do Pré-Sal e o Brasil se torna um agente importante na agenda energética global, os negacionismos climáticos começam a se organizar. O Brasil sempre foi uma liderança, até muito recentemente, nas negociações climáticas multilaterais. A diplomacia brasileira foi um construtor de pontes entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Ajudou a forjar e a disseminar princípios de negociação muito importantes, como o princípio das responsabilidades comuns, porém historicamente diferenciadas; e o princípio dos círculos concêntricos, em matéria de responsabilidades a serem assumidas e implementadas pelos Estados. Ou seja, o Brasil sempre foi um país muito importante na negociação mundial sobre o clima.

É claro que essa liderança foi perdida. Desde o governo Temer, mas sobretudo no governo Bolsonaro, o Itamaraty deixa de ocupar esse papel de liderança em função do fato de, sobretudo a partir de janeiro de 2019, o negacionismo climático ter ganho um estatuto quase oficial na desconstrução da agenda do clima no Brasil. Embora o negacionismo climático esteja no Brasil muito associado à emergência do governo Bolsonaro, as suas sementes podem ser encontradas em publicações, na circulação de cientistas e lideranças negacionistas, alguns institutos e fundações negacionistas aqui no Brasil desde o começo do século XXI. Eu tenho pesquisado e mapeado atores e agendas no Brasil no âmbito de uma pesquisa que está em andamento.

A entrevista realizada com o Professor Carlos Milani foi gravada e a transcrição exigiu adaptações no texto de responsabilidade nossa. Mais informações podem ser encontradas nos links abaixo:

www.obsinterclima.eco.br

www.carlosmilani.com.br

Ana Paula Tostes

Ana Paula Tostes