Adriana Aparecida Marques: Entrevista para o Número 9

Professora Doutora Adriana Aparecida Marques: Professora Adjunta do Bacharelado em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e entrevistada do Boletim Acauã para o Número 9

Juliana Viggiano

Muito obrigada, Adriana, por aceitar participar do Boletim Acauã e responder algumas perguntas sobre segurança internacional, políticas de defesa e sua relação com a política externa brasileira. Poderia começar se apresentando para os leitores?

Adriana A. Marques.

R: Olá Juliana. Eu sou professora no curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alocado no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da mesma universidade. Também sou professora colaboradora da Pós-Graduação em Relações Internacionais na PUC-RIO e colaboro com o Núcleo Democracia e Forças Armadas (NEDEFA) da PUC-RIO, um núcleo interdisciplinar. Atualmente  também participo de um projeto de extensão voltado para uma melhor compreensão e popularização das relações civis-militares. Estudo os militares brasileiros desde minha graduação na UNICAMP, onde me formei em ciências sociais, e fiz pós-graduação em ciência política, sempre trabalhando em colaboração com os colegas de outras disciplinas. Por último, e não menos importante, sou Coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD), um laboratório que congrega pesquisas em defesa desenvolvidas por alunos da graduação do curso que leciono.

Juliana Viggiano

Quais acredita serem os principais desafios para os próximos anos na área de segurança internacional e defesa para o Brasil?

Adriana A. Marques.

R: Os desafios para o atual governo no campo da segurança internacional e defesa são enormes. Nós temos praticamente uma década de erosão democrática, e um dos pilares da democracia é a subordinação das Forças Armadas ao poder político. Essa subordinação foi erodida na última década, como foi visto nos ataques de 8 de janeiro (de 2023) nos quais houve participação de militares da ativa e da reserva, e omissão das tropas que deveriam proteger o Palácio do Planalto. Esses atos golpistas exemplificam o tamanho do desafio do presidente Lula nos próximos anos. Em outras palavras, essa discussão sobre a subordinação ao poder político e a despolitização das Forças Armadas é uma discussão que só pode ser superada, colocada em bons termos, na medida em que voltarmos a discutir a defesa nacional. Eu acho que esse é ou deveria ser o eixo central do governo do presidente Lula, isto é, fomentar a ampliação da discussão sobre defesa nacional. Os documentos normativos de defesa devem ser atualizados e revisados a cada quatro anos; o processo já acontece no âmbito do Ministério da Defesa, porém conta apenas com a participação de militares. Então imagino que democratizar e desmilitarizar a discussão seria um passo importante para qualificar e democratizar o debate a respeito de defesa nacional. Em resumo, o principal desafio do Presidente Lula no campo da segurança internacional e da defesa é fazer com que se volte a discutir defesa nacional, porque não era isso o que estava sendo discutido até o final do ano passado. Estava-se discutindo fraude em urna eletrônica, essa era a principal discussão que estava envolvendo as Forças Armadas. Portanto, voltar a discutir Defesa Nacional é essencial. 

Juliana Viggiano

Como a agenda de segurança e defesa se alterou ao longo dos últimos 30 anos, no período pós-redemocratização?

Adriana A. Marques.

R: Os governos da nova república, principalmente a partir do presidente Collor, fizeram uma série de reformas institucionais que foram adequando o setor de defesa ao regime democrático. As principais mudanças organizacionais feitas foram, primeiro, alterar o número de ministérios. Depois, a criação do Ministério da Defesa (em 1999), que agregou  as Forças Armadas sob comando do poder político civil. Deixaram então de existir três ministérios militares além do EstadoMaior das Forças Armadas, que também tinha status ministerial. Portanto, foram quatro ministérios militares extintos.  

 

O presidente Collor também extinguiu o Serviço Nacional de Informações (SNI), que também estava ligado ao primeiro escalão do Executivo. O governo Fernando Henrique deu portanto essa grande contribuição com a criação do Ministério da Defesa (MD) e a promulgação da primeira Política de Defesa Nacional. O governo Lula aprofundou a discussão com a criação de mais um documento de defesa, a Estratégia Nacional de Defesa. Esses documentos são complementares. A Política de Defesa Nacional define, em linhas gerais, quais seriam as principais preocupações do país em termos de defesa nacional. A Estratégia Nacional de Defesa, por sua vez, é muito objetiva e estabelece como o setor de defesa vai funcionar. Também ainda durante o governo Lula houve uma modificação importante com a aprovação da Lei Complementar 136, também conhecida como a Lei da Nova Defesa. Essa lei foi muito importante para aperfeiçoar o desenho institucional do Ministério da Defesa porque ela especifica duas atribuições muito importantes para o MD. A primeira é a criação de um EstadoMaior Conjunto das Forças Armadas, atendendo a uma das principais demandas corporativas na criação do ministério: a interoperacionalidade das Forças. O segundo aspecto consiste em estabelecer que os documentos de defesa devem ser revisados a cada quatro anos.

 

Essa lei também determina que seja elaborado um Livro Branco de Defesa Nacional. O Livro Branco é um documento muito importante de transparência para a sociedade civil e para os outros países, principalmente para os países vizinhos. É um documento de transparência e prestação de contas para a sociedade brasileira. Esse documento foi elaborado já durante o governo da presidenta Dilma, que também teve uma outra ação muito importante no âmbito da defesa nacional com a criação da Comissão da Verdade. Havia uma Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas faltava realmente uma discussão mais estruturada sobre os crimes que foram cometidos e que ficaram impunes durante a ditadura. Então a Comissão da Verdade era o último processo ainda pendente se comparamos o Brasil com outros países que também passaram por um processo de transição de uma ditadura militar para um regime democratico.

 

Agora, quando o Ministério da Defesa foi criado e o primeiro documento de defesa foi promulgado, o contexto internacional era muito diferente. Nesses 30 anos que se passaram muita coisa mudou (o primeiro documento de defesa nacional é de 1996), o contexto internacional mudou significativamente, e, logo, a agenda de segurança e defesa mudou também por conta disso. A discussão sobre ameaças não militares, a própria ampliação da agenda de segurança, também levou o setor de defesa a atuar em áreas que não eram propriamente militares. No caso do Brasil em particular, vimos uma atuação maior das Forças Armadas em questões relacionadas à segurança pública, a ações assistencialistas, enfim, em apoio a outras agências governamentais, e principalmente nos últimos anos, vimos a agenda de segurança e defesa capturada essencialmente por questões domésticas e não militares.

Juliana Viggiano

De que forma acredita que as características da relação civil-militar no Brasil afetam a política externa brasileira?

Adriana A. Marques.

R: As características das relações civis-militares influenciam, e muito, a política externa porque, tal como a política de defesa, a política externa é uma política pública implementada fora do território nacional, mas que depende muito do contexto doméstico. Ambas são evidentemente influenciadas pelo que acontece no país. Quando pensamos sobre as relações civis- militares, no fato de termos sofrido tanto um processo de erosão democrática e de instabilidade política, com a atuação cada vez maior das Forças Armadas em atividades não militares e em atividades políticas, quanto mais instável politicamente o país, menor a possibilidade do governo se dedicar a uma política externa mais ativa. Foi isso que aconteceu desde o governo Temer. 

A atuação internacional do Brasil foi recuando. No caso do último governo (de Jair Bolsonaro) isso foi muito evidente. O Brasil deixou de participar em assuntos da agenda internacional nos quais o país tinha um papel de proeminência, como, por exemplo, meio ambiente e saúde. Tanto o meio ambiente quanto a saúde foram questões militarizadas no último governo e, ao serem militarizadas, houve uma interrupção do encaminhamento dessas questões nos fóruns internacionais, um trabalho de décadas. Portanto, relações civis-militares saudáveis são fundamentais para que se possa construir e perseguir uma boa política externa.

Juliana Viggiano

Por fim, na sua opinião, como o atual governo brasileiro pode contribuir na construção de uma agenda positiva nessa área para o país?

Adriana A. Marques.

R: Eu, e outros colegas também, temos defendido a criação de uma conferência nacional em defesa, assim como existe a conferência nacional na área de saúde, uma conferência na qual durante um ano as questões de saúde pública são discutidas com diversos níveis e atores: municipal, estadual, profissionais da área, sociedade civil, movimentos sociais. Claro, tendo em conta as particularidades da área de defesa nacional. Nós defendemos a criação de uma conferência nacional  justamente para que a cidadania se aproprie dos temas de defesa, para que haja uma discussão qualificada a respeito dessas questões, que não fiquem encapsuladas só no Ministério da Defesa, para que essas questões sejam discutidas com a academia, com a imprensa, com os movimento sociais, com os grupos que são mais atingidos pelas decisões que são tomadas pelo setor de defesa. Acredito que essa seria uma iniciativa muito auspiciosa e certamente seria uma maneira muito positiva de discutir defesa nacional, ampliando a discussão sobre esse tema, desmilitarização e democratizando a defesa nacional.

Entrevistadora: Juliana Viggiano

Entrevistadora: Juliana Viggiano

Editora do Boletim Acauã. Professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Segurança Internacional e Defesa (GESED) da UFSC, do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) da Universidade de São Paulo