Número 11 – Setembro de 2023

Understanding the Creeping Crisis

Autores: Arjen Boin – Magnus Ekengren – Mark Rhinard (Editors)

DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-030-70692-0

Hoc non pereo habebo fortior me. Contemporâneo de Cristo, Sêneca é, supostamente, o autor deste célebre provérbio (o que não me mata me fortalece). Tal argumento, que celebra o estoicismo, vem sendo empregado, desde então, nas mais diversas circunstâncias para descrever situações em que reveses quase certos são transformados em sucessos inesperados. O hiato que antecede a encruzilhada que determina a trilha da morte ou a via do fortalecimento é, geralmente, denominado de crise. É nele que as capacidades de reação e resiliência serão postas à prova e que definirão o desfecho: fúnebre ou venturoso.

 

set 2023

No campo da política, mais particularmente, a análise de crises contribui sobremaneira para a compreensão de inúmeros desenlaces: queda (ou não) de regimes, extinção (ou não) de partidos, eclosão (ou não) de conflitos, entre outros. Na seara das Relações Internacionais, as experiências de regionalismo têm se mostrado desafiadoras em momentos de crise, ora suscitando revigoramentos inesperados – como no caso da União Europeia, ora ocasionando inércia – como no Mercosul ou, ainda, desintegração – caso da Unasul. 

Mas o que é uma crise? Como ela é gestada? Com o fito de explorar estas questões, Arjen Boin, Magnus Ekengren e Mark Rhinard editam o livro Understanding the Creeping Crisis. A abordagem proposta é holística indicando que a sobrevivência do planeta está ameaçada por crises globais de intensa magnitude: mudança climática, migração forçada, terrorismo, pandemias, colapsos cibernéticos, erosão da privacidade e crescente desigualdade. O quebra-cabeça é simples: por que os governos não estão priorizando essas ameaças e as tratando como crises de grande escala que tantos especialistas argumentam que são? O ponto de partida dos autores se situa na análise da capacidade da União Europeia e de outras associações regionais de se prepararem para enfrentar essas ameaças e crises transfronteiriças. Eles percebem que algumas delas têm longas histórias, o que torna difícil identificar uma bifurcação entre a fase de incubação e a manifestação real do sintoma. Nasce, assim, a noção de crise rastejante ou creeping crisis

O primeiro dos dez capítulos que compõem a obra propõe um amplo arcabouço conceitual. Nele, os editores definem crise rastejante como “uma ameaça a valores sociais amplamente compartilhados ou a sistemas de sustentação da vida que evolui ao longo do tempo e do espaço, sendo prenunciada por eventos precursores, sujeita a vários graus de atenção política e/ou social e abordada de forma imparcial ou insuficiente pelas autoridades” (p.03). Tal acepção encerra quatro dinâmicas interligadas: (i) a emergência e desenvolvimento gradual do potencial de ameaça, devido a condições de interação ao longo do tempo e do espaço; (ii) o prenúncio da ameaça por meio de eventos precursores; (iii) a natureza mutável da atenção à ameaça, entre grupos sociais e funcionários públicos; (iv) a resposta parcial ou insuficiente à ameaça. 

Para Boin, Ekengren e Rhinard, o que diferencia a crise rastejante de uma crise “completa” é a falta de ação corretiva, o que, consequentemente, permite que seu potencial de dano seja amplificado. Assim, nas creeping crisis a legitimidade das instituições públicas e dos líderes políticos ganha destaque. Hoje, as pessoas se preocupam não se, mas quando o aquecimento global, as migrações, as tecnologias disruptivas, o desequilíbrio do mercado ou a desigualdade de renda provocarão uma grande crise. Como a natureza da crise rastejante não é amplamente aceita, o próprio ato de rotulá-la como uma crise (ou não) afeta a reação a essa ameaça. É fácil imaginar como um processo malfeito de construção de significado pode minar a legitimidade dos líderes, o que prejudica a eficácia da resposta e pode solapar ainda mais a legitimidade, gerando um círculo vicioso.

A partir deste esteio teórico preliminar, os demais capítulos efetuam estudos de crises específicas que, segundo seus respectivos autores, se enquadram na moldura das creeping crisis.

Assim, o segundo capítulo traz à ribalta o flagelo da resistência antimicrobiana. Alina Engström argumenta que nossa dependência de medicamentos antimicrobianos é uma bênção e uma maldição: curando-nos a curto prazo, mas criando as condições para um surto maciço e incurável no futuro.

Maria Prevezianou, no terceiro capítulo, demonstra, via WannaCry, como a ameaça cibernética está à espreita em segundo plano, evoluindo gradualmente no tempo e no espaço de maneira não linear e recebendo níveis variados de atenção. 

O quarto capítulo aborda a questão dos combatentes estrangeiros remanescentes – indivíduos que deixaram seus países de origem para viajar para zonas de guerra e que agora estão impedidos de retornar. Yrsa Landström argumenta que os campos de refugiados nos quais eles se encontram internados podem incubar, progressivamente, uma crise humanitária de grandes dimensões.

No capítulo cinco, Swapnil Vashishtha e Mark Rhinard estudam o fenômeno do Big Data. Aqui, a perspectiva de crise rastejante revela claramente a natureza cumulativa do problema, os eventos precursores ocasionais e a aceitação por alguns atores de que uma grande crise está no horizonte. Eles alegam que a dependência social e os interesses escusos dificultam o que seria uma intervenção onerosa. 

O capítulo seis trata da crise do controle fronteiriço na Europa em 2015. Yrsa Landström e Magnus Ekengren não julgam o denso movimento migratório como algo inesperado. Muitos indicadores anteriores prenunciavam uma catástrofe humanitária iminente. Com foco na resposta da Suécia, os autores mostram que o governo demora a reagir em grande parte por causa de antolhos ideológicos que prejudicam o debate sobre quando se preparar.

Alina Engström, Marte Luesink e Arjen Boin, no capítulo sete, comparam as respostas holandesa e sueca ao surto de Covid-19, apontando semelhanças relevantes, mas também destacando diferenças que ajudam a explicar a resposta atrasada. 

O capítulo oito, de Elin Jakobsson, volta-se para a questão da migração induzida pelas mudanças climáticas. Há muito latente, esse problema vaticina a possibilidade de um surto total, mas apenas os eventos precursores atraem a atenção. Eles são tratados, topicamente, como desastres, parcialmente resolvidos e depois abandonados, permitindo, assim, que o problema continue crescendo.

O capítulo 9 oferece o último caso. Alexander Verdoes e Arjen Boin examinam o surgimento de terremotos em partes da Holanda, que são sinais claros de como os campos de gás são explorados. As autoridades ignoraram os sinais, perpetuando, assim, o problema, levando a uma grande perda de legitimidade das instituições públicas.

Finalmente, no capítulo 10, os editores propõem uma conclusão que resume os principais achados do livro e apontam uma agenda de pesquisa para um estudo mais aprofundado da crise rastejante.

Understanding the Creeping Crisis esquadrinha a reflexão em torno do fenômeno crise e se posta como uma alternativa (ou um complemento) a percepções anteriormente proclamadas, tal qual a noção de Black Swan crisis, concebida por Taleb, que ao invés de privilegiar o possível caráter crônico da crise, prefere entendê-la como um epifenômeno explosivo e momentâneo[1]. Compreender a crise enquanto processo gera conhecimento para amparar gestores em suas tomadas de decisão. E os desafios que se apresentam para a Política Externa Brasileira não são acanhados. É possível que alguns deles – notadamente o que se refere ao projeto integracionista do Mercosul – possam ser melhor entendidos a partir de uma perspectiva de análise inspirada no conceito de crise rastejante.


[1] Cf. Taleb, Nassim Nicholas (2007), The Black Swan – The Impact of the Highly Improbable. New York: Random House.

Marcelo de Almeida Medeiros

Marcelo de Almeida Medeiros

Editor do Boletim Acauã. Professor Titular do Departamento de Ciência Política da UFPE e Pesquisador PQ-1C do CNPq. Possui doutorado em Ciência Política.