Número 12 – Dezembro de 2023

Policrise global e os seus mecanismos

Autores: Michael Lawrence – Thomas Homer-Dixon – Scott Janzwood – Johan Rockström, Ortwin Renn  – Jonathan Donges

DOI: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4483556

Neste número o Editorial Acauã expande a discussão sobre crise proposta no número 11 para apresentar o conceito de policrise global, da forma como o conceito é trabalhado por seis autores: Michael Lawrence, Thomas Homer-Dixon, Scott Janzwood, Johan Rockström, Ortwin Renn e Jonathan Donges. O trabalho foi publicado este ano, pelo Cascade Institute. Elemento central da análise desenvolvida pelo Professor Marcelo Medeiros no número 11 do nosso Boletim, o conceito de “crise rastejante” (cripping crisis, no Inglês) é essencial para a formulação da política externa. Na esfera dos desafios da política externa brasileira, este conceito assume centralidade semelhante.

Mas como o conceito de policrise global se relaciona com a noção de “crises rastejantes?”

Nos próximos parágrafos este número vai mostrar como a ocorrência de uma policrise global pressupõe a existência de múltiplas “crises rastejantes,” que na terminologia dos autores que publicam no Cascade Institute, constituem gatilhos de um fenômeno mais amplo: a policrise global. A oportunidade para identificar estes gatilhos é fundamental para a compreensão da policrise. Em última instância, a política externa pode (e deve!) compreender e endereçar os gatilhos, a fim de evitar a policrise global ou mitigar as suas consequências.

Porém de que falam os autores quando propõem o conceito de policrise – que, como eles mesmos informam, parte de conceitos pre-existentes? Como este conceito se diferencia da noção de crise tout court, e mesmo da noção de crise sistêmica? Michael Lawrence e coautores definem uma policrise global como o emaranhado causal de crises em múltiplos sistemas globais, de forma a degradar de maneira significativa o futuro da humanidade. Por sistemas globais os autores entendem oito esferas – vértices de um octógono – mutuamente interligados: 1) economia; 2) saúde; 3) ordem social e governança; 4) alimentação; 5) segurança internacional; 6) energia; 7) meio ambiente; 8) transporte e comunicação.

Fala-se de policrise quando mais de três sistemas globais enfrentam crises simultaneamente, sendo que a crise em um sistema global impacta os demais (e vice-versa!), através de vetores e condutores de policrises globais. Os autores analisam quatro destes vetores, e chamam à atenção para o fato de que em uma policrise global frequentemente vários vetores operam ao mesmo tempo, potencializando as consequências do que seriam crises globais individuais.

Os seis autores do estudo publicado pelo Cascade Institute em 2023 se perguntam, na sequência: Estamos em uma policrise global?

Eles respondem na afirmativa, e apontam as múltiplas crises globais que contribuíram para a atual policrise global. Entre estas encontram-se os efeitos sanitários, sociais e econômicos da pandemia da Covid-19; estagflação (combinação persistente de inflação com baixo crescimento); volatilidade dos mercados de alimentos e energia; conflito geopolítico; instabilidade política; eventos climáticos cada vez mais frequentes e severos causados pelo aquecimento global. Esta policrise global está diretamente associada à arquitetura interconectada dos nossos sistemas globais, portanto os riscos que derivam deste desenho institucional podem ser administrados, mas nunca totalmente eliminados. Entretanto, se o conhecimento acumulado no que tange cada sistema global é alto, aquele sobre os mecanismos que ligam estes sistemas globais ainda é precário. Aqui reside o chamado aos formuladores de política, inclusive formuladores de política externa, aos internacionalistas! Precisamos compreender melhor os mecanismos (vetores) que ligam diferentes crises globais.

Para tanto, vale lembrar que crises sistêmicas obedecem a um modelo que Michael Lawrence e coautores recuperam para o leitor no texto de 2023. Crises sistêmicas resultam da interação de estresses e gatilhos. Estresses são fenômenos que se desenrolam no longo prazo (ao longo de anos e décadas), enquanto gatilhos dizem respeito a fenômenos que acontecem no curto prazo (ao longo de dias e meses). A crise sistêmica é o resultado da interação entre estresse e gatilho fazendo com que um equilíbrio preexistente seja desestabilizado. Esta é uma definição agnóstica, portanto o equilíbrio associado a determinado estresse pode ser extremamente perverso. Da mesma forma, o equilíbrio que resulta de uma crise sistêmica pode ser melhor ou pior do que o equilíbrio inicial.

Diferentemente dos elementos de estresse em um contexto de crise sistêmica, os elementos de gatilho são imprevisíveis, aleatórios e de escala local ou regional. Porém gatilhos trazem consequências sistêmico-globais. Exemplos de gatilhos propostos pelos autores incluem ruptura política, aumento vertiginoso de preços em produtos e serviços críticos, a falência de grandes empresas. Portanto, atenção imediata a gatilhos que a princípio têm impacto local ou regional pode ser a chave para controlar o impacto destes gatilhos sobre estresses pré-existentes. Endereçar as consequências adversas associadas a estes gatilhos de maneira tempestiva e efetiva pode evitar que estes gatilhos atuem sobre estresses, provocando uma crise. Mais além, conter as consequências dos gatilhos é também fundamental para evitar que crises se multipliquem, eventualmente configurando uma policrise global.

Neste sentido, os autores do estudo mostram como estresses em um sistema podem amplificar estresses em um segundo sistema. Da mesma forma, a crise em um sistema pode afetar os estresses e/ou os gatilhos em um outro sistema. Por último, a crise em um sistema pode interagir com a crise em um outro sistema, alterando a dinâmica de uma ou de ambas as crises. A compreensão destas dinâmicas está se tornando ferramenta analítica essencial para internacionalistas fazerem frente à mudança radical que toma corpo em várias arenas da política internacional. No sistema do meio ambiente, a entrada no Antropoceno traz desafios urgentes; no sistema de energia global, a possibilidade de ultrapassar a dependência dos combustíveis fósseis é cada vez mais concreta; no sistema de segurança internacional, o movimento na direção de um sistema multipolar menos estável demanda novos realinhamentos; no sistema econômico-informacional, a inteligência artificial e o apelo de modelos econômicos mais dirigistas também requer habilidade regulatória.

Os problemas se complexificam e nos convidam a abandonar os nossos silos de conhecimento!

Cristiane Lucena

Cristiane Lucena

Editora do Boletim Acauã. Professora associada do instituto de Relações internacionais da USP e pesquisadora do CAENI. Possui doutorado em Ciência Política