Número 9 – Março de 2023

“Brasil e Forças Armadas: dissuasão, política externa e emprego interno”

Autores: Sérgio Aguilar e Thaiane Mendonça

Publicação: Colombia Internacional, número 107, pp. 163-190, 2021.

Os primeiros dois anos do Boletim Acauã foram dedicados ao tema do meio ambiente. Em seu terceiro ano, o Boletim aproveita a oportunidade de mudança no contexto político brasileiro para inaugurar um novo capítulo. Sensível aos desafios políticos, econômicos e sociais a serem enfrentados em nosso país, o Boletim passa a partir de agora a discutir as implicações desses processos para a política externa brasileira. Assim como as edições passadas, cada número do Boletim tratará de uma área relevante, agora para o debate da política externa, com o intuito de oferecer um olhar sobre suas características, dificuldades e expectativas de atuação, sempre baseado em um texto acadêmico publicado no Brasil ou no exterior.

colombia internacional

Essa primeira edição do novo ciclo se dedica a explorar os desafios da política externa brasileira no campo das políticas de defesa. O artigo publicado por Aguilar e Mendonça na revista acadêmica Colombia Internacional em 2021 oferece um panorama da articulação das políticas de defesa e da política externa no período pós-redemocratização, salientando a inconstância entre governos em desenvolver políticas de defesa que atendam aos objetivos e interesses estratégicos internacionais e regionais do país.

Esse comportamento, argumentam os autores, pode ser explicado fundamentalmente por três elementos: a separação das burocracias que produzem políticas públicas nesses dois setores, a inadequação das capacidades militares para lidar com ameaças externas e o envolvimento crescente das atividades das Forças Armadas em questões internas. Conjuntamente, esses três fatores apresentam importantes desafios a serem superados nos anos vindouros.

No que diz respeito à produção das políticas externa e de defesa, as burocracias responsáveis por cada uma dessas áreas tiveram ao longo dos anos somente pontuais momentos de articulação, com sua expressão mais aprofundada de alinhamento e complementaridade de objetivos nos governos Lula (2003-2011). As ambições de maior protagonismo no sistema internacional e regional desse governo favoreceram iniciativas do setor de segurança e defesa em prol da agenda de política externa. Em especial, destacam-se as atividades em operações de paz, sobretudo a realizada sob a liderança brasileira no Haiti (2004-2017), o envolvimento mais significativo em iniciativas internacionais dessa natureza. Apesar de documentos estratégicos como a Política Nacional de Defesa na sua primeira publicação (1996) e em duas revisões posteriores (2005, 2016) destacarem a necessária conexão entre esses dois campos, reiterada pelo Livro Branco de Defesa Nacional de 2012, essa articulação de maneira sustentada, como uma política de estado, ainda não foi alcançada.  

Quanto às capacidades militares, a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa, em suas diferentes versões, atestam que as principais ameaças identificadas se originam “muito mais em razão dos recursos que o país possui do que em relação a animosidades no seu entorno estratégico sul-americano” (p.169) e, portanto, as Forças Armadas devem estar preparadas para atende-las. No entanto, um conjunto de projetos estratégicos tiveram sua execução interrompida ou adiada em mais de uma ocasião em decorrência da escassez de recursos. Outros desafios associados à função central dos militares de prevenir e conter ameaças externas consistem na retomada do “debate sobre o programa nuclear brasileiro”, a avaliação da “dinâmica e da eficiência dos gastos militares, a adequação das capacidades tecnológicas do país para atender às necessidades militares e a questão da proteção das fronteiras” (p. 170).

Por fim, Aguilar e Mendonça chamam atenção para a crescente participação das Forças Armadas em atividades de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As missões de GLO são previstas e reguladas pelo artigo 142 da Constituição Federal, pela Lei Complementar 97 de 1999 e pelo decreto 3.897 de 2001. Autorizadas por convocação presidencial, atribuem temporariamente às Forças Armadas poder de policiamento em áreas restritas nas quais as agências de segurança pública são consideradas ineficazes em manter a ordem. Classificam-se como ações subsidiárias das Forças Armadas, isto é, atividades complementares às suas funções imperativas de defesa do território contra ameaças externas. Além da GLO, iniciativas na área de engenharia, assistência em caso de desastres naturais ou humanitários e apoio a comunidades na Amazônia, por exemplo, também entram nessa categoria.

O envolvimento das Forças Armadas em questões de segurança pública não é fato inédito em nossa história, e nas últimas décadas a mobilização de missões de GLO se tornaram mais frequentes. Os autores destacam dois documentos, os Manuais de Pacificação e de GLO, “que indicam algumas possíveis fontes de ameaça à ordem contra as quais as Forças Armadas devem estar preparadas. A partir deles, é possível depreender que as principais ameaças de ordem interna estão relacionadas ao crime organizado, especialmente o tráfico de drogas ilícitas e de armas”. (p. 180). No que diz respeito ao uso da força, sua utilização dentro do território nacional tem prevalecido sobre sua ação externa, “que se dá por decisão política e para fins políticos, distorcendo sua finalidade principal, a defesa contra ameaças externas, bem como dificultando o uso dessas forças em apoio à política externa do país” (p. 185).  

Adicionalmente, cabe mencionar outro aspecto fundamental no cenário político brasileiro pós-redemocratização que se agravou nos últimos quatro anos: a militarização da política. Esse processo atrasa a ainda inadequada subordinação militar ao poder civil, traduzindo-se, dentre outros, na ausência de autonomia civil na elaboração de políticas de defesa. Embora as preocupações levantadas por Aguilar e Mendonça esbarrem marginalmente nesse ponto, a premência da questão na vida política nacional e suas transformadoras implicações para o ambiente institucional requerem que o tema seja ao menos aqui mencionado. Fica a questão sobre quais seriam as potenciais implicações para a conexão entre política externa e políticas de defesa caso essa marca distintiva das relações civis-militares dos estados democráticos não se concretize.  

Juliana Viggiano

Juliana Viggiano

Editora do Boletim Acauã. Professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC e Pesquisadora do NUPRI e do IMDH. Possui doutorado em Ciência Política.