Número 10 – Agosto de 2023

“A Política Externa de Lula 3.0 além do horizonte”

Em referência ao artigo de HIRST, Monica. In: Cem Dias de Lula III. Cadernos Adenauer, 2023. 

Como Editorial que sequencia o Terceiro Ano de vida do Boletim Acauã, e com a preocupação de avançar na reflexão em torno dos desafios da política externa brasileira, propomos neste número apresentar um balanço – ainda que precoce -, do início do governo Lula III a partir da recuperação da presença internacional brasileira e reavivamento de um fazer diplomático que esteve presente e marcou os seus dois mandatos anteriores que se estenderam de 2003 a 2011. A ideia de que o Brasil regressou à política internacional, no que tange aos contornos e conteúdo de uma ordem internacional bastante mais questionada agora, merece ser debatida.

O ponto de partida da reflexão deste número reside na contribuição da Profa. Dra. Monica Hirst para o dossiê Cem Dias de Lula III, nos recém-publicados Cadernos Adenauer, e que se intitula “A Política Externa de Lula 3.0 além do horizonte”. Trata-se de uma contribuição que faz um vôo panorâmico dos primeiros cem dias do atual governo Lula e, ao fazê-lo, traz à tona um sentido de “virada de página”, nos termos da própria professora, quanto ao isolamento e à atuação deslegitimada tanto no nível regional quanto internacional do governo Bolsonaro (e que teve seu ápice no risco sensível de quebra da institucionalidade democrática), acentuadas sobretudo nos dois últimos anos de seu governo (2020-2022).

A expectativa de que a política externa brasileira seria resgatada neste terceiro mandato já podia ser observada nas atividades da Comissão de Transição Governamental e seu Grupo Técnico dedicado às relações exteriores, bastante capilares às movimentações, pressões e demandas da sociedade civil. Ademais, o acúmulo quanto às práticas relativas à diplomacia presidencial e um sensível interesse pelas agendas internacionais por parte de Luiz Inácio Lula da Silva, com um engajamento internacional constitutivo e diametralmente oposto ao de seu opositor nas urnas, apontava para uma retomada do reconhecimento político internacional. Ademais, o Ministério das Relações Exteriores também recebeu uma certa injeção de ânimo, sendo demandado de imediato quanto à transversalização de agendas centrais, tais como a de direitos humanos e inclusão e diversidade de gênero e racial.

A diplomacia ambiental e a diplomacia de e para os direitos humanos recebem atenção de Hirst (2023) no artigo em questão, uma vez que demandam articulação interministerial a fim de terem suas sensibilidades devidamente endereçadas e permitirem o avanço do Brasil junto de atores estratégicos. Exemplos da primeira são a cooperação ambiental Sul-Sul e no que tange às singularidades da bioeconomia amazônica, assim como as relações bilaterais com a União Europeia (UE), um parceiro estratégico e segundo maior parceiro comercial do Brasil, e que tem exigido esforços de alinhamento e coordenação da agenda ambiental a fim de viabilizar, inclusive, a conclusão do Acordo Mercosul-UE.

No que concerne à agenda de direitos humanos, a reversão do que Monica Hirst (2023, p.96) enfatiza em sua contribuição como a “[…] pauta de costumes, uma cartilha de valores conservadores […] adotada na gestão de políticas atinentes à diversidade racial e direito das minorias, à igualdade de gênero e à liberdade de orientação sexual e de identidade de identidade de gênero e à liberdade religiosa […]” é latente e o próprio Itamaraty aparece munido da vontade política para superar e reparar esse descompasso, para não dizer atraso.

Faz-se, entretanto, importante enfatizar, seguindo o raciocínio de Hirst, que o contexto mundial em que este governo Lula III se insere é bastante distinto do contexto de início do século XXI. Se por um lado, o Brasil sob o governo de Lula III parece ser central na preservação do multilateralismo como amálgama da ordem internacional liberal residual, o Brasil de agora também necessita reforçar suas possibilidades de exercício autônomo da política externa neste cenário internacional conturbado.

A ênfase nos BRICS enquanto coalizão estratégica ou mesmo um volume de críticas ao que corresponde às bases desiguais de estruturação e manutenção da ordem internacional e suas normatividades decorrentes – pretensamente universais – aponta para um retorno brasileiro crítico ao internacional, com movimento pendular entre o imperativo de manutenção de alicerces chave da ordem internacional, tais como a democracia e os direitos humanos, e o imperativo da prudência diante das tensões estratégicas e desgastes derivados do jogo político internacional que se desdobra.

A importância das relações bilaterais da alta política e a retomada do regionalismo, envolvendo os denominados bilateralismos prioritários no contexto sulamericano, tal como sustenta Hirst, são vitais para este governo de reconstrução. Do mesmo modo, as instabilidades geopolíticas e ameaças contundentes à paz diante da guerra russo-ucraniana não poderiam passar ao largo de um posicionamento do Brasil. Hirst enfatiza que não só por dentro da institucionalidade do Conselho de Segurança da ONU (em tom moderado e que fora mantido), mas para além dela agiu o Brasil: construindo, por exemplo, um diálogo capaz de mobilizar lideranças tanto ocidentais quanto não ocidentais e sublinhando os altos custos humanitários da guerra. De outra sorte, o Brasil, ao esvair-se do chamamento de algumas das potências ocidentais para enviar ajuda militar para a Ucrânia, insistiu na ideia de que “[…] a guerra constituía a principal ameaça, e não a ação de uma das partes” (p.99).

Oportunidade ímpar ainda tivemos de ouvir a autora do texto que enseja este Editorial acerca de questões aqui levantadas e outras que surgiram na entrevista que ocorreu por ocasião do 9º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais, neste último mês de julho. Logo mais a entrevista estará disponível na página do Boletim Acauã!

Cláudia Marconi

Cláudia Marconi

Editora do Boletim Acauã. Professora da FECAP e da PUC/SP. Titular da Cátedra Jean Monnet, coordena o Instituto Brasil - União Europeia. Possui doutorado em Ciência Política.