Número 3 – Setembro 2021

Este terceiro editorial do Boletim Acauã dá continuidade à tarefa de divulgar conteúdos científicos sobre o tema da proteção ao meio ambiente – eixo central das atividades editoriais do Boletim em 2021. Neste editorial o nosso leitor entra em contato com as principais ideias do livro publicado por Joana Pereira e Eduardo Viola este ano: “Climate Change and Biodiversity Governance in the Amazon. At the Edge of Ecological Collapse?” Os autores têm uma longa trajetória de produção científica sobre o tema da proteção ao meio ambiente, com ênfase para o problema da mudança climática. Neste livro o foco é a governança da biodiversidade na Amazônia, tema pouco explorado na literatura. Para tanto, Pereira e Viola analisam quatro países centrais para a compreensão dos desafios assim como para a concepção de propostas que evitem o “colapso ecológico iminente,” como o subtítulo do livro aponta. 

Estes países são o Brasil, o Peru, a Bolívia, e a Colômbia – que juntos contemplam aproximadamente 90% da floresta amazônica. Estes países também compartilham a característica de pertencerem ao seleto grupo que reúne territórios com maiores percentuais de biodiversidade do planeta. Portanto, a compreensão do problema e o desenho de soluções requer uma leitura mais próxima da trajetória de Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia no tema Amazônia e biodiversidade. Proteção à biodiversidade na Amazônia encontra-se frequentemente imbricado no tema mudança climática, e a análise dos autores no livro apenas confirma esta realidade. Neste sentido, enfrentar os desafios para a preservação da biodiversidade renderá frutos para a mitigação dos problemas associados à mudança climática.

Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia possuem várias características em comum, para além da presença da floresta amazônica em seus territórios. Desigualdade econômica, processos incompletos de democratização, modelos de desenvolvimento predatório são apenas três das características que aparecem recorrentemente nos quatro estudos de caso. A análise também aponta peculiaridades. No caso brasileiro, entre 2004 e 2012, o país alcança uma redução do desmatamento da floresta amazônica da ordem de 80%, resultado comparável ao que a Costa Rica conseguiu. Os desafios brasileiros são claramente distintos daqueles da Costa Rica, haja vista a dimensão do nosso território e a própria extensão da floresta que nele se encontra. Infelizmente, este resultado – que os autores associam a políticas públicas desenhadas ainda durante a administração Fernando Henrique Cardozo, posteriormente implementadas por meio da habilidade política da Ministra do Meio-ambiente, Marina Silva, for posteriormente revertido. Este episódio de redução drástica do desmatamento da floresta amazônica no Brasil não tem equivalentes nos outros três países estudados. De fato, no Peru, assim como na Bolívia e na Colômbia, o percentual de desmatamento permaneceu crescente ao longo do período 2002-2019, sendo que no caso da Colômbia os autores apontam uma divergência importante nos dados de desmatamento da floresta entre as fontes disponíveis.

O caso peruano se destaca pelo legado da distante guerra civil – com a cultura do medo implantada pelas estratégias terroristas do Sendero Luminoso – assim como pela marca do autoritarismo da Presidência Fujimori. O resultado foi um alto nível de fragmentação institucional que compromete até hoje a capacidade estatal de formulação e implementação de uma política de proteção da Floresta Amazônica. No Peru, o desmatamento foi associado ao deslocamento de populações campesinas, e mais recentemente, à pressão do agronegócio. O modelo de desenvolvimento predatório exerce pressão sobre a floresta em todos os quatro países analisados no livro. Porém, o contexto histórico e a qualidade das instituições políticas influenciam o resultado da tentativa de implantação deste modelo. Por outro lado, o redirecionamento do agrobusiness para os mercados asiático e do Oriente Médio promoveu o relaxamento das demandas por rastreamento de modos de produção, predominantemente associadas ao mercado Europeu. Esta conjunção de fatores reduziu a pressão e os incentivos políticos para a demarcação de áreas florestais e a institucionalização de mecanismos de proteção. O resultado, mais uma vez, é a crescente ameaça à biodiversidade e à própria sobrevivência da Floresta Amazônica – que o livro enfatiza foram significativamente mais fortes no Peru, na Bolívia e na Colômbia.

O capítulo sobre a Bolívia está marcado pela Presidência Evo Morales. A ascensão ao poder de um líder indígena foi acompanhada de grande mobilização por parte da sociedade civil e marcada, inicialmente, por forte comprometimento com a agenda da proteção ambiental. Simultaneamente, as divergências entre a Presidência de Morales e o governo da Província de Santa Cruz se tornaram irreconciliáveis. O livro analisa detalhadamente o acirramento do enfrentamento político e a decorrente crise – que quase se desdobra em uma guerra civil. Este contexto compromete a implementação das políticas de proteção à floresta e os seus desdobramentos levam Morales a se afastar de facto dos compromissos assumidos. Durante a entrevista com o Professor Eduardo Viola – que acompanha este editorial e é fortemente recomendada a você, leitor – fica clara a ambivalência da postura do Presidente Evo Morales. Se para a comunidade internacional ele se apresentou como um líder ambientalista, para os cidadãos bolivianos, Evo Morales se transforma em hábil negociador que passa a esposar os interesses das lideranças políticas de Santa Cruz para viabilizar a sua própria sobrevivência política. Como sabemos, ele falha em ambas frentes – sendo que a Floresta Amazônica paga parte da fatura, com patamares crescentes de desmatamento para dar lugar às iniciativas do agronegócio.

O capítulo sobre a Colômbia retoma o tema da fragilidade institucional. Anos de guerra civil e a dinâmica do processo de paz parecem consumir toda a energia política do país. Do ponto de vista analítico, o livro sugere que a guerra civil esteve associada a baixos níveis de desmatamento. As FARC utilizavam a floresta para fomentar o cultivo ilegal de coca, com vistas a financiar suas próprias atividades; a floresta também cumpria um papel estratégico, frequentemente dificultando a penetração estatal e do estado de direito. Com o desenrolar do processo de paz – processo lento, que demandou compromissos e apenas foi viabilizado por meio de um equilíbrio frágil, as pressões migratórias (inclusive da migração oriunda da Venezuela), o projeto de (re) assentamento de populações deslocadas pelo conflito armado – e não menos importante, as demandas do agronegócio – impulsionaram o processo de desmatamento. O caso colombiano destaca-se pelo protagonismo dos Estados Unidos, não apenas durante a negociação do acordo de livre comércio (2012), mas também durante o processo de paz. Infelizmente, a análise sugere que a presença norte-americana não engendrou níveis maiores de comprometimento com políticas de proteção ambiental; ao contrário: os programas de fumigação para erradicar o cultivo ilegal de coca foram responsáveis por deslocamentos populacionais que estão associados a níveis mais altos de desmatamento da Floresta Amazônica.

O livro conclui com apontamentos sobre o impacto da pandemia da Covid-19 nos quatro países. O quadro de crise econômica é agravado pela crise sanitária. O Peru e o Brasil despontam como exemplos críticos do impacto da pandemia sobre a economia e sobre as instituições políticas. Com isso, o chamado urgente para que o iminente colapso ecológico seja endereçado.

Cristiane Lucena

Cristiane Lucena